• EDER SANTOS

    BARRAVENTO NOVO
  • A obra de Eder Santos incita-nos a retirar as lentes através das quais observamos diariamente um mundo cada vez mais monocromático para enxergarmos o que não se vê. A tecnologia fria do vídeo é metamorfoseada por um olhar sensível e por um trabalho de edição e manipulação da imagem que não se submete a nenhuma linearidade e alcança proporções vertiginosas – Barravento¹.

    Se as referências à produção cinematográfica brasileira permeiam a produção do artista de maneira perene, Barravento Novo é uma reverência de um dos pioneiros da arte multimídia ao Cinema Novo. A videoinstalação, criada em colaboração com o artista nipo-estadunidense Bruce Yonemoto a partir do filme homônimo de Glauber Rocha, propõe uma justaposição que confronta o passado e o presente da história brasileira, assim como as tecnologias cinematográficas. No espaço expositivo, as cenas filmadas em 35mm pelo cineasta baiano são sobrepostas às  imagens digitais em 4K do artista mineiro. Os universos de Cota e Firmino, personagens principais do filme de 1962, confluem avultados na atuação hipnotizante de Camila Pitanga, protagonista da videoinstalação de 2017, que incorpora, ao mesmo tempo, Cota e Firmino – Barravento².

    Esquivando-se da mimese, Eder Santos segue à risca o grito de Firmino: a independência de Barravento Novo transparece na virtuosística edição que acompanha a fala final de Antônio Pitanga – homenagem ao primeiro protagonista negro do cinema brasileiro e também à estética de edição glauberiana –, ressoa no barravento³ que integra a paisagem sonora da obra. O détournement existente na videoinstalação preserva, entretanto, a estética e narrativa contidas no primeiro longa-metragem de Glauber Rocha e realça alguns debates e tensões próprios do cinemanovismo brasileiro, os quais permanecem atuais ainda na terceira década do século XXI.

    Assim como a herança cultural e religiosa africana na Bahia não se restringe a Barravento na obra de Glauber Rocha, a vocação transatlântica também atravessa grande parte do universo artístico de Eder Santos. Após a série Todos os Santos (2016), na qual o sincretismo religioso se imiscui nas imagens projetadas em pequenos oratórios, a vídeo-escultura Oxalá demanda-nos um tempo kairótico para desvelar paisagens evocadas pelo vôo plácido do orixá e a intermitente dança das penas, convidando o espectador a uma experiência imersiva no espaço expositivo, numa espécie de contraponto à cadência cíclica e acelerada do ritmo de Xangô que coabita a galeria.

    Há ainda um vínculo estreito que une os universos de Glauber Rocha e Eder Santos. Ambos, “com câmeras nas mãos e ideias nas cabeças” são extremamente engajados e críticos em relação à sociedade docilizada, cujo lema principal se resume às palavras “trabalhar, consumir e morrer”. Retratando a violência e a precariedade do terceiro mundo e refletindo sobre as camadas mais profundas entre opressor e oprimido, Barravento foi o marco inicial de um movimento que seria fortemente censurado pela Ditadura Militar no Brasil. Dado muito significativo, Barravento Novo nasceu cinquenta e cinco anos depois, num momento em que a democracia novamente era ameaçada e a cultura mais uma vez perseguida. Enquanto Aruan aponta para o oceano Atlântico em direção à África ao gritar “Nós temos que reagir!”, no filme de Glauber Rocha, a obra punk barroca de Eder Santos procura nas paisagens do nosso entorno a resposta ao grito de Firmino: “A nossa hora está chegando!”. Exigindo uma postura estética e ética em relação às imagens, o artista recorda-nos que a arte se encontra sempre à barravento⁴.


    ¹Designa o ato de uma pessoa perder o equilíbrio do corpo, como se sentisse uma ligeira tontura.
    ²Estado de atordoamento que precede a tomada da filha ou filho de santo pelo orixá, que neles se manifesta por cambaleios e movimentos desordenados.
    ³Ritmo e um toque de atabaque utilizado na capoeira, candomblé e na umbanda.
    ⁴Termo de origem incerta que significa o lado de onde sopra o vento.

     
    Luiz Gustavo Carvalho
  • Eder Santos e Bruce Yonemoto

    "Barravento Novo", 2017

    video instalação, 4K - 2.29:1, projeção | videoinstallation, 4K - 2.29:1, projection   

    duração: 10'37'' | duration: 10'37''
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  • Participação Especial:

    Antônio Pitanga

    Camila Pitanga

    Antônia Pitanga

     

    Música:

    Paulo Santos

  • "Barravento Novo" é uma ode ao filme "Barravento" (1962), de Glauber Rocha, na época com apenas 23 anos de idade. O filme de Eder Santos e Bruce Yonemoto resgata a história desse clássico do Cinema Novo, que trata do racismo, intolerância religiosa no Brasil e comunidades marginalizadas. "Barravento Novo" apresenta a atriz Camila Pitanga, representativa no cenário da dramaturgia nacional, justamente para resgatar a importância do filme de Glauber Rocha em trazer Antônio Pitanga como o primeiro ator negro a representar um papel principal no cinema brasileiro. Papel de um revolucionário. Esse feito histórico, encarnado pela atriz em Barravento Novo, ainda recebe as vozes de Antonio Pitanga no auge de seus 70 anos, e de Antônia Peixoto, filha de Camila, completando as três gerações da família.
  • Através de "Barravento", Glauber Rocha iniciou um processo de revolução da linguagem cinematográfica no Brasil. Nessa primeira fase, muito voltada para as temáticas sociais do Nordeste brasileiro, o Cinema Novo trouxe uma visualidade original totalmente brasileira, neste caso típica do sertão nordestino, com forte contraste luminoso a partir das filmagens externas realizadas no pico do sol. Em "Barravento Novo", de Eder Santos e Bruce Yonemoto, esse contraste dá lugar a uma luz tenra, quase nebulosa. Essas duas estéticas entram em choque ao serem colocadas juntas na instalação, inclusive proporcionando um contraste tecnológico, onde o cinema digital se depara com o 35 mm da câmera analógica.
  • As cenas do mar de "Barravento Novo" com Camila Pitanga fazem uma alusão ao "Barravento" de Glauber Rocha ao resgatar o fenômeno metafísico marítimo do barravento. Enquanto no filme original, o barravento acontece através da mudança climática, com ventos fortes, chuvas e mar revolto, no filme de Eder Santos e Bruce Yonemoto, o barravento é representado pela convulsão das águas causada pela comoção da atriz nas águas do mar.
  • Sobre Eder Santos

    1960, Belo Horizonte, Brasil. Vive e trabalha em Belo Horizonte

    A pesquisa de Eder Santos trabalha com o hibridismo próprio da linguagem audiovisual, proporcionando por meio de seus vídeos verdadeiras experiências sensoriais, com planos de pinturas sonorizadas que combinam distorções de cores e sons. Explorando temáticas próprias do cotidiano mineiro, a pesquisa de Eder Santos demonstra compreender a importância da representatividade das mídias tecnológicas na cultura contemporânea, bem como suas responsabilidades como ferramentas universais de comunicação.

     

    Eder Santos estudou Artes Plásticas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, mas preferiu terminar sua formação cursando Programação Visual pela Fundação Mineira de Arte Aleijadinho (FUMA, 1984). Dentre as exposições individuais mais importantes estão Paço Imperial (2017, Rio de Janeiro, Brasil), Sesc Pompéia (2013, São Paulo, Brasil), MAM-Salvador (2010, Brasil), Centro Cultural Banco do Brasil (2010, Rio de Janeiro, Brasil), MASP (2010), Museu de Arte da Pampulha (2007, Belo Horizonte, Brasil), University of Virginia Art Museum (2006, EUA), Museo de Arte Moderna de Buenos Aires (2000, Argentina). As mostras coletivas mais importantes são Tate Modern (2017, Londres, Inglaterra), Museu da Imagem e do Som (2014, São Paulo), Bienal de Curitiba (2013, Paraná, Brasil), Liverpool Biennial (2021, Inglaterra), Itaú Cultural (2007, São Paulo, Brasil), Bienal de La Havana (2006, Cuba), MAC-USP (2002, Brasil), Museo de Arte de Buenos Aires (2000, Argentina), 23a Bienal de São Paulo (1996, Brasil), MoMA (1993, Nova York, EUA), etc. Eder Santos também participou de diversos festivais de vídeo e cinema, como a maioria das edições do Festival VideoBrasil (São Paulo), sendo contemplado com diversos prêmios, Videoarte Festival (Locarno, Suíça), Tokyo Video Festival (Japão), Manifestation Internacionale Video et Art Electronique (Montreal, Canadá), New York Video Festival (EUA), etc. Também recebeu o Prince Claus Fund and Development (2003, Holanda) e Special Mention Festival et Forum Internacional des Nouvelles Images (1996, Locarno, Suíça), Melhor Vídeo no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (1995, Havana, Cuba) e no V Festival Internacional de Video Franco-Latino-Americano (1995, Bogotá, Colômbia), dentre muitos outros. Seus trabalhos compõem o acervo do Centre Georges Pompidou (França), Cisneros Fontanals Art Foundation (EUA), MoMA-NY (EUA), MAM-SP/RJ (Brasil), etc.

  • Sobre Bruce Yonemoto

    O trabalho de Bruce Yonemoto se posiciona nas interseções sobrepostas da arte e da tela do cinema, concentrando-se principalmente na diáspora asiática do mundo mais amplo. Ele acredita que a mídia massificada representa um novo local histórico de dominação do comportamento humano.
     

    Yonemoto foi homenageado com inúmeros prêmios e bolsas do National Endowment for the Arts, do American Film Institute e do Maya Deren Award for Experimental Film and Video. As instalações, fotografias e esculturas de Bruce foram apresentadas em grandes exposições individuais no ICC em Tóquio, no ICA na Filadélfia e no Kemper Museum em Kansas City. Uma retrospectiva do trabalho de Bruce e seu irmão Norman foi exibida no Museu Nacional Japonês-Americano de Los Angeles em 1999. Seu trabalho foi apresentado em Los Angeles 1955-85 no Centro Pompidou, Paris, Fundação Generali, Viena, Bienal de Gwangju, Coréia, Pacific Standard Time, Getty Museum, uma mostra de pesquisa em Kanazawa, Japão, uma retrospectiva no Museu Hong Gah em Taiwan, uma mostra de pesquisa de trabalhos que ele produziu na América do Sul na Luckman Gallery em LA, uma mostra individual no JACCC Los Angeles e uma retrospectiva na Tate Modern London, Anthology Film Archives e Kunstverein Hamburg. Atualmente, Bruce é professor de arte na Universidade da Califórnia em Irvine.