Dividing Line
A Luciana Brito Galeria tem o prazer de anunciar a exposição coletiva online Dividing Line [Linha divisória]. Inspirada na obra homônima de Regina Silveira, a mostra apresenta um conjunto de trabalhos que provoca uma reflexão crítica sobre nossa realidade atual, em que concepções sociais têm sido obrigatoriamente reconfiguradas, gerando novos parâmetros político-sociais, e como os momentos críticos estabelecem uma linha divisória com a realidade do passado. A proposta curatorial também objetiva criar uma experiência visual, abraçando o formato expositivo virtual. Ao todo, são mais de vinte obras dos artistas representados: Regina Silveira (1939, Porto Alegre), Marina Abramovic (1946, Iugoslávia), Fernando Zarif (1960-2010, Brasil), Bosco Sodi (1970, México), Caio Reisewitz (1967, Brasil), Rochelle Costi (1961, Brasil), Liliana Porter (1941, Buenos Aires), Hector Zamora (1974, México), Tiago Tebet (1986, São Paulo), Rafael Carneiro (1985, Brasil) e Iván Navarro (1972, Chile).
Os trabalhos de Regina Silveira são um conjunto de impressões sobre alumínio que utilizam a figura da mão como elemento que gera a ação. Em Dividing Line (2020), título que dá nome à exposição, a artista registra a ação do rasgo, tão profundo que divide duas metades, duas realidades, de forma irreparável. Já Verso e reverso (2020) pontua o momento em que se perfura os lados de uma superfície com a mão, por meio do impacto que atravessa, que penetra. A apropriação de elementos do cotidiano, no caso aqui a figura da mão, faz parte da pesquisa da artista. Neste caso, a artista usa a própria mão, marcando gestos pessoais, deliberadamente agressivos e provocadores. Esta série, se posicionada no atual contexto, estabelece justamente uma metáfora para esse marco histórico mundial de rompimento para novos tempos.
A investigação de Hector Zamora adentra os enredos históricos para problematizar questões sociais e políticas. A instalação Sem revolução não há independência (2016) é composta por 26 tijolos de cerâmica, todos do tempo do Brasil Império, numa alusão a um Brasil historicamente inerte como nação. Esse discurso anacrônico e atemporal de Zamora posiciona essa obra precisamente como uma crítica contundente e ao momento atual de divisão e polarização política em que estamos vivendo. Cada um dos 25 tijolos representa um estado no Brasil, todos embalados com uma página da Constituição brasileira, a não ser um, que resta desnudado, numa alusão a nossa capital.
Da mesma forma, as obras de Iván Navarro convocam para o embate da consciência. A série de gravuras Carta visual (2019) reúne mensagens de protestos por meio de uma prática muito usada pelo artista: o uso da desconstrução de símbolos de ideologias e elementos comuns para a transmissão de mensagens políticas e sociais. Crescido sob o regine ditatorial do governo Pinochet, no Chile, o artista entendeu como o uso de códigos e mensagens subliminares pode combater o poder institucionalizado em favor dos diretos humanos.
Por várias vezes, Marina Abramovic esteve em terras brasileiras, sempre em busca de experiências e matérias-primas para seu trabalho. Reconheceu aqui a força da espiritualidade, do sincretismo religioso e seus processos de cura. Dessas vivências, surgiu a série de trabalhos Places of Power [Lugares de poder], com fotografias, vídeos e objetos realizados a partir da interação do espaço natural da Amazônia e elementos na natureza, cujos efeitos enriquecem corpo, mente e espírito, como no caso do quartzo azul, mineral usado na obra Black Dragon (Blue Quartz) (1994), que traz propriedades medicinais. Para a artista, a obra de arte tem o papel fundamental de balancear as energias, promovendo qualidade de vida e cura àqueles que acreditam no seu potencial.
Bosco Sodi também se utiliza dos elementos da natureza para a realização de suas obras. Essas pequenas pinturas-objetos combinam argila, pigmentos e fibras naturais para proporcionar efeitos de cores e texturas, que simulam fenômenos naturais, geológicos e químicos. Embora de maneiras diferentes, tanto Sodi como Abramovic condicionam suas pesquisas para o conhecimento das
sabedorias dos povos ancestrais e nativos. Suas obras chamam a atenção para a preservação não apenas da natureza, mas também do sagrado contido nela.
Em sua série mais recente, Cassino (2019), Caio Reisewitz reúne fotografias de grande dimensão que também primam pela potência da natureza, ao passo que nos faz um alerta. As imagens foram captadas há alguns anos, mas exibidas pela primeira vez mais recentemente em mostra individual homônima em 2019, na Luciana Brito Galeria, justamente durante o momento crítico de queimadas na região Amazônica. Cassino aqui faz referência à extensão da orla localizada na divisa com o Uruguai e reúne imagens que parecem nos posicionar exatamente na calmaria da orla deserta retratada. Se tomada diante dos fatos atuais, a série sugere justamente esse momento involuntário de trégua com a natureza proporcionado pelo recuo da presença humana diante da pandemia. A pesquisa de Reisewitz associa a técnica fotográfica impecável à exuberância natural e sua força tão necessária à preservação da vida.
Ainda sobre o suporte fotográfico, Casa da ilha (2018), de Rochelle Costi, abre uma janela para o escapismo e a sublimação da realidade. Para a compreensão dimensional da imagem, o espectador é conduzido a uma consciência de si mesmo, colocando-se como referência para comparar as escalas desmedidas, estranhas. Trata-se de uma diminuta maquete de uma casa real de 1951, localizada em uma ilha do Rio São Francisco, onde estão posicionados parte de um ladrilho hidráulico e uma pilha de pedras de anil, ambos do acervo de memórias afetivas da artista. Esse processo de autopercepção, associado ao histórico particular de Costi, reúne de certa forma artifícios comuns da sua investigação, como manipulação da escala, ilusões de percepção e metáforas visuais, para lidar essencialmente com a experiência humana e resgatar esse encantamento que só pode partir dos universos particulares.
A escala de valores e as questões existenciais fazem parte da pesquisa de Liliana Porter. Esta série de desenhos provoca o imaginário coletivo por meio da linha tênue que traça o paradoxo entre a realidade e ficção. Os pequenos objetos fazem parte de um colecionismo particular, garimpado em feiras e antiquários, que veem seus significados primários serem modificados por meio da composição artística de Porter. Além de atiçarem as memórias afetivas, eles funcionam como gatilhos para as experiências guardadas no subconsciente. São combinações únicas que contam uma história comum a todos nós, mas também única a cada um.
A curadoria reúne, ainda, obras de dois artistas cujas pesquisas priorizam a pintura como suporte. Tiago Tebet, desde muito jovem, vem explorando os processos e as formas de ressignificação, principalmente na representação da contracultura de práticas populares marginalizadas. A pesquisa sobre as possibilidades e especificidades da representação na pintura evoluiu para um trabalho preocupado com a construção e a materialidade, percebido fortemente neste conjunto de trabalhos mais recentes do artista. As variáveis da representatividade na pintura são também fortemente questionadas por Rafael Carneiro. Para tanto, o artista se utiliza de sua coleção particular de imagens digitalizadas na construção de “colagens virtuais”, onde se perde a noção de profundidade. Ao implementá-las na pintura, essas imagens resgatam sua essência formal, como é o caso da obra Esteira (2020), uma montagem enigmática de imagens díspares, que atribuem tons surreais e fantasmagóricos. Já as pequenas pinturas de Fernando Zarif retratam expressões faciais mais do que simples rostos. São como frações de segundos de relatos de experiências individuais, momentos de introspecção e crises existenciais. A obra de Zarif salta aos olhos pela multiplicidade de referências, ao mesmo tempoque demonstra um apuro técnico e estético. Embora realizados com traços coloridos e irreverentes, esses rostos na verdade comprazem a seriedade do momento em que estamos vivendo.