• Analivia Cordeiro: Da coreografia ao código

    Peter Weibel
     
    O feito pioneiro, único e notável, de Analivia Cordeiro, assim como indica o título da exposição, trata da transição de uma coreografia centrada no corpo para uma coreografia centrada no código. Essa transição tem origem na questão da coreografia como um esquema gerador e notação, como meio de armazenamento e instrução. Para a linguagem existe a escrita e para a música existe a notação para transmitir informações. Para a dança, essa ars memoria – arte da memória – quase não existia. As letras são os símbolos escritos dos pensamentos. Letras ou símbolos escritos de movimentos quase não existiam. Somente hoje, com o advento da tecnologia de captura de movimento auxiliada por computador, existe um “roteiro de movimento”, que desde os anos 1700 é denominado “coreografia”.
     
    A palavra coreografia é uma combinação das palavras gregas choreía (dança) e grafhein (escrita): dança-escrita. A função das notações é documentar e criar algo que possa ser comunicado. Assim, a coreografia, de Raoul-Auger Feuillet a Rudolf von Laban, tratava originalmente da possibilidade de reproduzir a dança, prescrevendo e reescrevendo os reais movimentos. Hoje, trata-se da análise e desenho dos movimentos do corpo no espaço e no tempo.
     
    A dança, pela sua complexidade como uma linguagem do movimento corporal no espaço e no tempo, trazia uma problemática única, requisitando uma notação multidimensional. Das notações de dança expressiva de Rudolf von Laban (Ausdruckstanz) (fig. 1) ao Sistema de Movimento Eshkol-Wachman (1968) (figs. 2, 3) e às Tecnologias de Improvisação de William Forsythe (1999/2003)[1], tem havido uma série de tentativas surpreendentes de documentar graficamente, ou seja, de anotar os movimentos da cabeça, braços, pernas, pélvis e tronco no sistema de coordenação quadridimensional de espaço e tempo em uma superfície bidimensional, de tal forma que possam ser reproduzidos, recuperados e ordenados.
     
    As várias ideias sobre as formas de apresentação da dança e da performance levaram inevitavelmente à questão de como os movimentos do corpo podem ser codificados em notação. A dança não é, portanto, apenas uma questão de coreografia, mas também de código. Como os movimentos do corpo podem ser codificados no espaço e no tempo? Esta questão central, no entanto, não surge apenas da história da dança e da performance, mas também da própria história recente da arte, pois as artes visuais do século XX tendem a deixar de lado a pintura para buscar “sair da imagem”[2] (Laszlo Glotzer) através de novas formas de arte como Happening, Fluxus, ações e performances. Os gêneros clássicos das artes bidimensionais e tridimensionais baseadas no espaço, como a pintura e a escultura, têm avançado para a quadridimensionalidade desde a década de 1960, enquanto as artes clássicas quadridimensionais baseadas no tempo, como a dança, por outro lado, tendem para a tridimensionalidade. A expansão das artes tem sido multidirecional. Até hoje, a pintura inclina-se para as artes espaciais e de objetos, e a escultura para as artes de ação. As artes de ação tendem diametralmente para o mundo dos objetos, reais visíveis ou virtuais invisíveis, de William Forsythe a Sasha Waltz, e do mundo da mídia, para filmes, vídeos e computadores. Yvonne Rainer impulsionou a expansão da dança para o cinema de forma radical e muito cedo, ao produzir filmes constantemente (Lives of Performers, 1972; Trio A., 1978).
     
    A música como principal meio de uma arte baseada no tempo, desempenhou um papel importante na transformação da arte visual, de uma arte do espaço (pintura, escultura) em uma arte do tempo (ação, evento, dança). O impulso foi uma autêntica questão musical; ou seja, o papel do performer. A Nova Música do final da década de 1950 (Pierre Boulez, John Cage, etc.) procurou emancipar o intérprete, concedendo-lhe uma nova liberdade no âmbito de uma “obra de arte aberta” (Umberto Eco, Opera Aperta, 1962; em português: Obra Aberta, 1989). Nadando contra a correnteza de uma cultura incipiente do destinatário, a liberdade do intérprete tornou-se central. O compositor normalmente escreve uma partitura, por exemplo, para piano, mas é apenas o músico que sabe interpretar e tocar essa partitura que realmente dá vida à obra. Os compositores escrevem a música, a partitura: um manual de instruções.
     
    Os intérpretes implementam essas instruções de uso e criam a música.[3] A partitura é um conjunto de instruções para criar um evento específico, uma performance. O conceito de partitura foi ampliado, desde instruções de uso de instrumentos musicais às instruções sobre como usar objetos e pessoas. George Brecht, que frequentou os cursos de John Cage na New School for Social Research, em Nova York, no final da década de 1950, expandiu a ideia de partitura para o termo event scores [partituras de eventos], instruções para ações simples e cotidianas (No Smoking Event, 1961). Yoko Ono, que fazia parte do círculo frequentado por John Cage, também criou instruções para o público, chamado por ela de Instructions. O conceito 18 Happenings in 6 Parts (1959), de Allan Kaprow, também trata “Instructions” para “um elenco de participantes”.
     
    A transformação da performance em arte de espaço trouxe similaridades com as formas performáticas do teatro, música e dança. O resultado se deu através de atos, ações e performances. Por outro lado, a transformação da performance nas artes de tempo, do cinema à música e dança, levou à convergência com formas performáticas de escultura, instalação e pintura. Um piano imóvel poderia ser cenário para uma infinidade de concertos (La Monte Young, Composition 1960 #7, 1959/1960). Performances e exposições se uniram.
     
    Assim, a transformação da arte performativa por volta de 1960 começou principalmente com a extensão da noção de partitura na música e com novas experiências em dança, que se expandiram para os mundos dos objectos e dos suportes – o que também levantou a questão da notação. Na década de 1960, contudo, ações, performance, dança e arte midiática foram marginalizadas pelo circuito artístico. Os artistas que, contra todas as probabilidades, assumiram o risco de desenvolver essas novas formas de arte, representam a fase “heróica” da arte performática – foi apenas a geração seguinte de artistas que conseguiu alcançar o reconhecimento dos museus do mundo, no início do século XXI.
     
    Até algumas décadas atrás, o balé clássico era a forma dominante de dança. O balé clássico era principalmente centrado no corpo. Mas o figurino e a cenografia também desempenhavam um papel importante – pense na colaboração dos Ballets Russes de Serge Diaghilev com Pablo Picasso em 1917 para a peça Parade, de Jean Cocteau, com música de Eric Satie.
     
    Mais importante, porém, do que os elementos visuais dos cenários e figurinos foi a música. Desde The Nutcracker Suite (1892) e Swan Lake (1895), de Pyotr Ilyich Tchaikovsky, até a música de Parade (1917), de Eric Satie, fica claro que os músicos e o coreógrafo eram parceiros do mesmo nível.
     
    Nos tempos modernos, esses componentes ganharam vida própria e pareciam mais um sanduíche. A música era relativamente autônoma, assim como a apresentação visual. Também existiam balés sem música, justamente para enfatizar a autonomia dos dois componentes. Um mestre absoluto desses elementos independentes de produções performáticas é Robert Wilson, que encena a iluminação, o design do palco e os movimentos dos cantores independentemente da música. Podemos afirmar que o balé era uma tríade composta por música, artes visuais e dança, cujo fator primordial era a coreografia do corpo no espaço e no tempo.
     
    Após a expansão das artes, esta tríade mudou. Reconhecível de forma exemplar no trio John Cage, Merce Cunningham e Robert Rauschenberg: músico, dançarino, coreógrafo e artista visual trabalhando com a mesma importância. A música e a dança existindo de forma independente, mas partilhando o mesmo espaço e tempo. Os movimentos dos dançarinos não estão ligados à música. Esse descolamento da imagem tornou possível o descolamento da escultura; a transformação de gêneros artísticos bidimensionais e tridimensionais em formas de ação, isto é, em ações quadridimensionais do corpo no espaço e no tempo: de Jannis Kounellis (fig 4) a Joseph Beuys (fig 5). A colaboração entre Robert Morris e sua então parceira Simone Forti exemplificou essas duas direções opostas de expansão. Ou seja, a escultura tende a expandir-se em tempo e ação, e a ação tende a expandir-se em espaço e escultura. Um exemplo é o “Dance Constructions”, de Simone Forti, que teve início em 1960. Por exemplo, em um deles, See Saw (1960) (fig. 6), ela combinou movimentos comuns, como caminhar, deslizar e escalar, com objetos do cotidiano, como cordas e folhas de madeira compensada. Na versão original da performance, Yvonne Rainer e Robert Morris subiam e desciam em uma longa prancha, equilibrando seus corpos, um em relação ao outro. Aproveitando essa ideia, Morris montou uma espécie de coreografia para visitantes (fig. 7) na Tate Gallery, em Londres, em 1971. Coreógrafas como Yvonne Rainer e Trisha Brown (Accumulation, 1971) também exploraram esse campo de ação que utiliza objetos. Todos esses artistas acima mencionados, no entanto, permaneceram apenas no âmbito dos objetos analógicos. Na década de 1960, Michael Noll, do Bell Labs, em Nova York, foi um dos primeiros defensores da combinação entre computadores e dança. Em seu livro Changes: Notes on Choreography (1968) [Mudanças: Notas sobre Coreografia], Merce Cunningham especulou, pela primeira vez, sobre a possibilidade de criar bonecos palitos dançantes na tela de um computador. Usando notação eletrônica, essas figuras se moveriam no espaço, para que se pudesse observar os detalhes da dança: parar ou desacelerar, brincar com o tempo, observar no espaço onde cada dançarino virtual estaria, e também observar a forma do movimento.
     
    Nas décadas de 1970 e 1980, houve uma evolução na dança de computador e notação além dos realizados por Analivia Cordeiro, incluindo o desenvolvimento de um editor para Benesh Notation, por Rhonda Ryman. No final dos anos 1980 e 1990, Merce Cunningham trabalhou com Tom Calvert e sua equipe da Simon Fraser University, em Burnaby, Canadá, desenvolvendo um novo programa de software de dança computacional chamado Life Forms, em 1989. Juntamente com a designer de interfaces Thecla Schiphorst, ele continuou a desenvolver o software, que mais tarde foi renomeado como DanceForms. Uma das danças mais importantes de Cunningham, BIPED (1999), que ele desenvolveu com os artistas visuais Paul Kaiser e Shelley Eshkar, abrange não apenas o movimento humano concebido a partir de DanceForms, como também imagens abstratas e figuras de dança criadas a partir de sequências de dança capturadas em movimento, recriadas e sequenciadas novamente no computador.[4]
     
    Atualmente, nota-se que cada vez mais apresentações de dança utilizam aplicativos RV [Realidade Virtual] e RA [Realidade Aumentada], ou operam nos mundos das projeções de vídeo e das imagens digitais apoiadas por sensores. Em outras palavras, depois da arte visual clássica, a arte midiática também conquistou a dança. O corpo já não é o foco dominante; essa forma de dança descentralizada expandiu-se para incluir outras possibilidades de expressão; por exemplo, do corpo ao código. Com esta expansão, a dança libertou-se das amarras históricas de ser puramente uma arte corporal e avançou para novas dimensões da antropologia.
     
    Uma grande pioneira dessa transformação da dança em arte midiática e antropologia é Analívia Cordeiro. Para a artista, o papel da notação é significativo. O seu trabalho sobre notação coreográfica é comparável ao trabalho de G. W. F. Hegel sobre o Conceito, posto que obriga o coreógrafo a tomar decisões racionais que vão muito além da pura expressividade. Um mestre desta técnica é William Forsythe (fig. 8). Ele compõe uma tecnologia digital de notação utilizando objetos escultóricos, sendo que esses objetos, que eram visíveis na geração anterior de artistas, agora são invisíveis. Ele trabalha, portanto, no espaço abstrato do código.
     
    As notações abstratas de Analivia Cordeiro são uma demonstração exata do caminho da coreografia de expressão corporal ao movimento codificado do corpo no espaço e no tempo. Aqui, de certa forma, ela até antecipou o sistema de captura de movimento. Sua notação não apenas tenta assimilar o movimento, e armazenar a coreografia para os coreógrafos subsequentes, como também é generadora, já que projeta, quase algoritmicamente, a sequência de movimentos no espaço e no tempo, da mesma forma que a analysis situs, transformou a geometria em matemática. Para a analysis situs, cada corpo no espaço recebe pontos no sistema de coordenadas XYZ e esses pontos são marcados por três dígitos. Dessa forma, até certo ponto, Cordeiro também matematizou o espaço para coreografia com suas notações. A sua preocupação é a analysis situs, a análise do espaço, e não a expansão do corpo. Se as suas performances possuem, no entanto, um valor imensamente expressivo, é porque ela nos ensina um código secreto, que consiste no fato de que quanto mais complexa for a geometria (isto é, os movimentos, posições do corpo no espaço), maior e mais intensa será a sua expressividade.
     
    A partir disso, Cordeiro criou o “sistema de visualização expressiva”, Nota-Anna (1983/94). Essa conquista na abstração abriu dois caminhos opcionais para a artista. Por um lado, transformar esboços abstratos de movimento em esculturas; e por outro, matematizar o movimento. Dito isso, resta apenas citar seu conterrâneo sul-americano Comte de Lautréamont, nascido em Montevidéu, Uruguai: "Ó matemática austera! Eu não esqueço você desde que seus ensinamentos aprendidos, mais doces que o mel, destilaram-se em meu coração como ondas refrescantes...”[5] [tradução livre]. A nova “Language of Dance"[6] (1963) [Linguagem da Dança] foi escrita por um “coreógrafo programador”[7] (1977) – por Analivia Cordeiro. Sua videodança de computador de 1973 é, portanto, um incunábulo da história da arte midiática, bem como da arte da dança. Foi apresentado no importante festival do Computer Art Society, INTERACT. Machine: Man: Society, em 1973, em Edimburgo, Escócia, no contexto de outros pioneiros importantes, como Vladimir Bonačić, Vera Molnár, John Whitney e John Lifton. Os modelos cibernéticos de dança de Analivia Cordeiro, baseados em filme e vídeo, estruturados e programados com a ajuda de computadores, abriram as portas para o século XXI: todos os coreógrafos mais avançados de hoje trabalham com sensores como interfaces e mídias e códigos baseados em computador.
     
    A importância de um código em vez de uma coreografia talvez possa ser explicada por uma referência ao evento de Derrida. Para Derrida, “[o traço é o apagamento da individualidade, da própria presença, e é constituído pela ameaça ou angústia do seu desaparecimento irremediável, do desaparecimento do seu desaparecimento. Um rastro inapagável não é um rastro, é uma presença plena [...]”[8] [Tradução livre]. O traço é um componente que está diretamente relacionado ao que é percebido através dele; isto é, o que se torna visível. A dança é visível durante algum tempo, repleta de presença, mas é justamente através do seu movimento que todos os vestígios de movimento são apagados. Cada nova sequência de movimento de uma dança torna-se presença justamente ao apagar sua sequência anterior de movimento. A dança, nesse sentido, é a arte do traço, um traço que só se torna visível apagando-se constantemente. O desenho é o traço do movimento da mão. A mão deixa um rastro material no papel, que permanece. Neste aspecto, não podemos concordar com Paul Valéry, que em 1936, a partir do exemplo de Degas, afirmou que existe uma analogia entre o desenho e a dança,[9] porque enquanto a dança passa, é o desenho que permanece e persiste. A partitura é, portanto, menos o ato e mais o evento no sentido de Alain Badiou.[10]
                                                               
    O código, porém, não é a dança, assim como a partitura não é a música. A rigor, os grandes compositores, de Bach a Mozart, não nos deixaram a música; eles deixaram gráficos mousikē. Eles nos deixaram partituras visuais; isto é, escritos para produção musical. Dessa forma, a música como traço é comparável à dança. Os movimentos se apagam assim como os sons. A música e a dança são casos especiais de presença. Sem o traço, a presença, que dura apenas um momento, não é constatada. Se a presença é entendida como presença e presente, necessita de testemunhas. O evento, a música ou a dança, literalmente atesta que a presença é uma propriedade do testemunho. Transformar o traço de volta em acontecimento com a ajuda de testemunhas, pessoas ou documentos, como textos, fotos e filmes, é o verdadeiro cerne da questão da dança.
     
    O que há de grandioso e inovador na conquista de Analivia Cordeiro é que ela foi além dessa concepção. Para ela, o traço não significa apenas um sistema de gravação, armazenamento. Não, ela utiliza a tecnologia do “traço” (filme, vídeo, computador) para construir, criar e coreografar a dança. Isso a torna uma das primeiras a introduzir o vídeo e o computador na dança ou na arte da performance, como teatro, música e performance. Seu trabalho seminal de 1973, M3×3, é considerado a primeira obra de arte em vídeo da América do Sul, e internacionalmente, foi uma das primeiras coreografias de dança criadas especificamente para o vídeo, usando processamento de imagem de computador para registrar os movimentos de dança. Essa criação, utilizar meios e códigos para a coreografia, também distingue o trabalho da artista de outras produções de dança e performance da década de 1970 que tratam do domínio do corpo, como o trabalho de Ulay e Marina Abramović.
     
    Em se tratando de artes em expansão durante a década de 1960, a dança também se expandiu em três direções: na utilização de objetos (visíveis e não visíveis); na utilização da mídia; e expansão para o espaço. Analivia Cordeiro foi a primeira e mais radical artista a transferir a dança para o espaço. Ela não utilizou a mídia para documentar apresentações de dança; em vez disso, ela coreografou para os suportes de vídeo e filme, semelhante à forma como os melhores fotógrafos de arte encenavam e construíam seus temas. "Dança está para o vídeo, assim como a performance está para a fotografia” era o seu lema.
     
    Da mesma forma, ela reconheceu que o espaço é o suporte da dança, semelhante à escultura moderna. Até 1960, as esculturas – representações de corpos humanos ou de animais – permaneciam no espaço, mas não tematizavam o espaço em si. Foi somente depois de 1900 que os escultores modernos focaram no espaço e polemizaram contra o volume, a massa e a gravidade. Entende-se, pelos exercícios matemáticos do corpo de Analivia Cordeiro, que ela percebe a gravidade como uma prisão. Para Cordeiro, a dança é um exercício aritmético no espaço da mente, que está inconsciente da sua atividade. As extremidades do seu corpo dão continuidade às três coordenadas do espaço, representando-as e brincando com elas. Tal como as danças com varas de Oskar Schlemmer nas suas “Bauhaustänze” (danças em Bauhaus) (1926-1929), que nada mais eram do que jogos com coordenadas espaciais. Os braços, pernas e tronco foram estendidos com hastes porque o corpo foi definido como parte do espaço e do seu sistema de coordenadas (fig. 9. O corpo representava o espaço e o espaço representava o corpo. Normalmente, o corpo supostamente reflete os estados internos que os movimentos do corpo exteriorizam, expressam. É por isso que se chama Ausdruckstanz – dança expressiva. Schlemmer e seus seguidores, especialmente Analivia Cordeiro, que o reconhece como exemplo, articulam o espaço habitado pelo corpo, pois todo movimento ocorre no espaço e no tempo, incluindo os movimentos do corpo. Sim, o movimento cria espaço e tempo. A este respeito, a morada do corpo não é o próprio corpo, mas o espaço.
     
    Esta mudança de paradigma da expressão (dança expressiva) para o espaço (dança espacial) já foi um passo decisivo dado por Analivia Cordeiro. Mas houve também um segundo passo: a virada para a mídia. Ou seja, ela experimentou que o vídeo e o filme, como meios de notação, permitiam que o corpo fosse coreografado no espaço. Ela converteu cada posição de um movimento, cada análise de uma posição espacial, cada analysis situs, em três dígitos das coordenadas espaciais e, através disso, matematizou a dança e a transformou em um caso especial de geometria analítica. Com base na calculabilidade do movimento, ela então utilizou computadores para controlar, gerar e programar a coreografia: “Programador como Coreógrafo”[11] (1977). Uma conquista incrível! A comunidade da informática reconheceu esse feito antes da maioria e por isso convida Analivia Cordeiro para importantes festivais de informática desde 1973. Sua coreografia computadorizada da década de 1970 certamente se enquadra na grande tradição do Construtivismo e da Arte Concreta brasileira, à qual pertencia seu pai, Waldemar Cordeiro, e à qual o esteticista da informação Max Bense prestou homenagem.[12] No entanto, a conquista de Analivia Cordeiro de codificar a coreografia é única.
     
    Só hoje, quando a extensão da dança para os meios de comunicação atingiu o mainstream, é que compreendemos o feito artístico de Analivia Cordeiro – com que tremenda imaginação e rigor matemático ela conquistou e moldou a terra incógnita.
     


    [1] FORSYTHE, William Forsythe, Tecnologias de Improvisação: Uma Ferramenta para o Olho Analítico da Dança, ZKM | Karlsruhe, Deutsches Tanzarchiv Köln (Ostfildern: Hatje Cantz, 1999/2012), CD-ROM com livreto. (tradução livre para efeitos de entendimento)

    [2] GLOTZER, Lazlo. Westkunst: Zeitgenössische Kunst seit 1939 (Cologne: DuMont, 1981), 234.  

    [3] Em 1960, o compositor La Monte Young escreveu a Composition 1960 #10: “Draw a straight line and follow it”. Em 1962, Nam June Paik escreveu Ready-Music-Do it yourself-Answers to La Monte Young: “See your right eye with your left eye”. Os aspectos gráficos da partitura ganharam vida própria por volta de 1950: Morton Feldman, Projection 3 for Two Pianos, 1951; Earle Brown, dezembro de 1952; Iannis Xenakis, Metastasis, 1954, e 4 Systems, 1954. A partitura de Metastasis tornou-se, de fato, o esboço original da impressionante arquitectura do Pavilhão Xenakis's Philips para a Expo’58 em Bruxelas.

    [4] Ver Janet Randell, “Dance and the Computer–Merce Cunningham,” Cedar Dance Animations Limited, 2019. Encontrado em https://cedardance.com/dance-the-computer-merce-cunningham/.

    [5] LAUTRÉAMONT, Comte de. Les Chants de Maldoror [1868], segundo canto, décimo verso (New York: New Directions, 1965), 86.

    [6] Ver Mary Wigman, The Language of Dance. Walter Sorell (Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1966). Primeiro publicado em alemão como Die Sprache des Tanzes (Stuttgart: Ernst Battenberg, 1963).

    [7] CORDEIRO, Analivia. "The Programming Choreographer" [O Coreógrafo Programador]. Computer Graphics and Art 2, No. 1 (1977): 27–31.    

    [8] DERRIDA, Jacques. Writing and Difference [1967], trans. Alan Bass [1978] (London: Routledge, 2001), 289.

    [9]Ver Paul Valéry, Degas, Dance, Drawing (New York: Lear Publishers, 1948).

    [10]Ver Alain Badiou, L’être et l’événement [1988]; Being and Event, trans. O. Feltham (London: Bloomsbury Publishing, 2013).

    [11] Ver Cordeiro, “O Coreógrafo Programador".

    [12] Ver Max Bense, Brasilianische Intelligenz: Eine cartesianische Reflexion (Wiesbaden: Limes Verlag, 1965). A primeira edição em inglês deste livro foi publicada por Spector Books, Leipzig, na primavera de 2023.

  • Figuras