Rochelle Costi | A casa como laboratório: curadoria de Alexia Tala
Como voltar a ver o que temos diante dos olhos todos os dias? Como devolver densidade, mistério e complexidade àquilo que aprendemos a considerar como certo? Essas perguntas atravessam a obra de Rochelle Costi (1961–2022), uma das artistas mais singulares da fotografia brasileira contemporânea. Seu olhar, carregado de humor, ironia e sensibilidade, sempre desfez as hierarquias visuais e afetivas do cotidiano, mostrando que, no espaço doméstico, nos objetos mínimos e nos gestos aparentemente triviais, pulsa uma vida exuberante, cheia de história e de possibilidades criativas.
Na exposição A casa como laboratório, proponho que falemos de quartos, objetos e passatempos, e que nos aproximemos da obra de Rochelle Costi a partir de uma noção que pertence ao escritor francês Georges Perec: o infraordinário. Em seu breve texto Aproximaciones a lo Infraordinario, Perec se pergunta: “O que acontece quando nada acontece? Como falar dessas horas, desses dias em que nada ocorre, onde não passa de fato mais do que o que acontece todo dia, o habitual, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o de todos os dias?[1]” Para Perec, o infraordinário é aquilo que constitui o tecido real de nossas vidas: não os grandes acontecimentos, mas o murmúrio do habitual, a marca do mínimo. No entanto, tornamo-lo invisível, porque o tomamos como garantido, porque o incorporamos à rotina de modo quase automático. O gesto poético — tanto para Perec quanto para Costi — consiste em desautomatizar a percepção, em reapropiar-se da nossa vida cotidiana, em tornar estranho o familiar e, assim, recuperar o poder do deslumbramento.
Passatempo (2018) permite introduzir uma dimensão chave da prática de Costi: a relação com o tempo. Essa obra reflete sobre a ideia do ócio, do tempo suspenso, do fazer sem finalidade ou mesmo do não fazer (se é que existe). Cada uma das imagens que produziu durante sua vida sugere uma pausa no fluxo cotidiano, um interstício onde o tempo se dilata. Aqui, o infraordinário adquire uma dimensão temporal: o tempo "perdido" que, na verdade, faz parte essencial da experiência de habitar. Como observaram estudos da neurociência e da filosofia contemporânea, é nos momentos de ócio — mais do que nos de produtividade constante — que se abrem espaços para o descobrimento, a imaginação e a criação. Em Costi, observar não é apenas ver, mas deter-se, e habitar o tempo lento do doméstico.
Rochelle Costi foi, nesse sentido, uma artista do infraordinário. Ao longo de sua extensa e produtiva carreira, evitou temas espetaculares ou cenários grandiloquentes, preferindo explorar quartos, móveis, armários, objetos comuns, cantos esquecidos, insetos, paredes, padrões, texturas, lojas de objetos baratos e até barracas de feiras. Tive a oportunidade de visitar junto com ela Chichicastenango, na Guatemala, onde as barracas dos feirantes estavam, uma após outra, transbordando de pilhas de huipiles[2], teares e artesanatos perfeitamente organizados. Rochelle se alimentava dessa efervescência; de fato, dessas visitas nasceu sua obra Contabilidade (2016). Sobre essa obra, a própria artista diz em uma conversa online com o artista Mateo López: “Chama-se Contabilidade porque tudo estava numerado, todos os itens que aparecem nas fotos estavam numerados, assim como um arranjo de contas que vai além dos números, de quantas coisas há, mas das contas em geral, da ancestralidade, de todos os movimentos que isso traz até hoje para nós. Quantos sinais e movimentos há em um huipil, quantas vezes isso foi feito antes, em outras gerações, sobretudo a permanência disso, como isso permanece até hoje e que histórias traz”.[3] Embora essa série não aborde diretamente o espaço doméstico, o vínculo com a memória material, a ordem simbólica dos objetos e sua capacidade de conservar gestos ancestrais dialoga com a lógica do habitar que atravessa sua obra. Pude perceber que Rochelle não olhava de fora, nem de cima, mas de dentro, com uma atenção paciente e meticulosa, como se quisesse aprender a ver o mundo pela primeira vez. Em sua obra, a casa aparece como um cenário privilegiado: não apenas como refúgio, mas como laboratório de descobertas e deslumbramentos, como uma geografia íntima onde os afetos, as tensões e as memórias ganham forma.
Na série Quartos - São Paulo (1998), Costi fez um inventário visual de quartos em diferentes casas de São Paulo. A artista fotografa camas, armários, escrivaninhas, acumulações de objetos, deixando que cada imagem funcione como uma espécie de “retrato indireto” de quem habita esses espaços. Esse gesto conecta-se profundamente com o projeto literário de Georges Perec em La Vida: Instrucciones de Uso, onde ele descreve, cômodo por cômodo, um edifício parisiense imaginário, detendo-se em seus habitantes, nos objetos que os cercam, nos gestos, nas histórias minúsculas e nos rituais cotidianos.
Em ambas as obras, tanto artística quanto literária, a acumulação não é mero excesso, mas método: trata-se de catalogar o múltiplo para capturar a riqueza do aparentemente banal. Ambos constroem uma poética do detalhe. Em Costi, como em Perec, o doméstico se converte em uma cartografia do desejo e da memória, um terreno onde o individual se mistura com o coletivo, onde cada objeto e cada canto contam uma história — mesmo que fragmentada, incompleta ou imaginada.
Embora Casa da Ilha (2015) e Quarto de Banho (2017) compartilhem uma aproximação ao espaço desabitado, cada série o aborda a partir de enfoques distintos. Casa da Ilha consiste em fotografias feitas no interior de uma maquete de madeira, construída como um modelo de habitação rústica. Essas imagens remetem a uma ideia da casa como símbolo arquetípico, quase alegórico, onde o espaço reduzido e construído em escala sugere tanto refúgio quanto artifício. Por outro lado, Quarto de Banho documenta um banheiro real, sem pessoas, mas cuidadosamente intervindo ou composto, onde os detalhes decorativos ganham protagonismo visual. Em ambos os casos, Costi trabalha com espaços silenciosos que, no entanto, contêm vestígios que aludem a presenças passadas ou iminentes. Embora as estratégias formais sejam distintas — uma a partir da ficção modelada, outra da documentação encenada — ambas as séries convidam a uma contemplação atenta, onde o aparentemente insignificante revela sua potência narrativa. Como nos textos de Perec, o visível torna-se legível, e o aparentemente insignificante revela sua força narrativa.
Na série Casa Cega (2002), Costi dá um passo adiante e explora a dimensão inquietante do espaço doméstico. A casa, tradicionalmente entendida como lugar de abrigo e segurança, torna-se aqui um corpo cego, um espaço que perde suas coordenadas habituais, um labirinto onde o familiar torna-se estranho, onde não se pode estabelecer contato do interior para o exterior nem vice-versa. Nesta série ressoa a noção freudiana do sinistro (Das Unheimliche): aquilo que deveria ser íntimo e confiável, de repente revela seu reverso ameaçador. Costi nos lembra que o infraordinário não é necessariamente tranquilo ou amigável: também pode ser inquietante, perturbador e estar carregado de latências obscuras.
A série Desmedida (2009) aprofunda a relação entre o cotidiano e o arbitrário de nossas normas perceptivas. Costi intervém objetos domésticos, multiplica-os, estica-os, distorce-os e os coloca em relação a espaços em escala, até que perdem sua função habitual. Dessa forma, enfatiza o caráter artificial das categorias que organizam nossa vida diária. Aqui, o infraordinário aparece como sistema invisível que estrutura o visível. Ao alterar esses códigos, Costi desarma as expectativas do espectador, obrigando-o a renegociar sua relação com o mundo material, a descobrir no trivial um potencial inesperado.
Na participação de Costi na Bienal de São Paulo de 2010, intitulada Há sempre um copo de mar para um homem navegar, curada por Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, a artista apresentou obras como Reunião (2010) e Pele (1997-2010), entre outras, ambas pertencentes à série Residência. Nessas instalações, Costi transforma o espaço expositivo em uma extensão do universo doméstico, mas atravessado por uma dimensão de estranhamento. Em Reunião, cadeiras idênticas, porém de diferentes tamanhos, agrupam-se em torno de uma coluna do edifício projetado por Oscar Niemeyer, gerando uma coreografia visual que desorienta o espectador e converte o mobiliário cotidiano em uma forma abstrata e rítmica. Pele, obra originada no projeto Parede do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), exibe um padrão visual caleidoscópico composto por fotografias de pés de galinha, um motivo que tensiona deliberadamente os limites entre o decorativo e o repulsivo. Aqui, o infraordinário alcança sua dimensão mais expansiva: os gestos e materiais mais simples são reorganizados até se tornarem desconcertantes, convidando o espectador a reconfigurar sua percepção do espaço e dos objetos que o habitam.
Casinha (2011, série Lanterna Mágica) retoma a figura da casa a partir de um registro onírico. Por meio de imagens translúcidas retroiluminadas que evocam a infância, o jogo e a memória, Costi transforma a casinha em um arquétipo carregado de significados. A casa não é mais apenas um espaço material, mas um receptáculo de lembranças, de relatos apenas insinuados, um limiar entre o real e o imaginário. É uma homenagem àquela zona intermediária onde habita o infraordinário: entre o gesto e o símbolo, ou mais especificamente entre o objeto e a evocação.
Outro ponto relevante de interseção é a estrutura fragmentária que ambos compartilham. La vida instruccionesde uso avança seguindo um percurso labiríntico pelos apartamentos do edifício parisiense, pulando entre espaços, personagens e tempos, como se montasse um quebra-cabeça do cotidiano. Em Casa Própria (1999), Costi cria pequenas arquiteturas domésticas a partir de objetos e materiais encontrados, restos de embalagens ou materiais precários que a artista introduz em diversos espaços públicos na Cidade do México. Essas "casas" improvisadas aludem à instabilidade da moradia no contexto urbano latino-americano e criticam a utopia do lar estável. Como em Desmedida, cada peça é um fragmento que, somado aos demais, compõe um comentário crítico e poético sobre o lar, o consumo e a ordem social.
Assim, a referência a Perec não apenas ilumina afinidades temáticas, mas também uma afinidade metodológica: tanto Costi quanto Perec trabalham a partir do fragmento, da série, da montagem, para tornar visível aquilo que normalmente fica oculto sob o adormecimento do cotidiano. Ambos nos ensinam que habitar não é apenas ocupar um espaço, mas construir sentido a partir de gestos mínimos, disposições sensíveis e formas de atenção.
Uma inflexão notável dentro desta constelação de obras é o vídeo Há Casas (2018), um curta de 3 minutos que desloca a noção de casa para o campo do simbólico a partir do ritual. A partir de filmagens realizadas durante a procissão do Círio de Nazaré, em Belém do Pará (2017), onde devotos carregam casinhas de madeira das mais variadas formas e cores como oferendas representativas do desejo de ter uma casa, e de fotografias feitas em Jordão, no Acre (2018), onde documenta moradias reais construídas em comunidades amazônicas, Costi estabelece uma relação entre representação e realização. A montagem revela como o desejo de morada se manifesta tanto em gestos ritualísticos quanto em estruturas habitadas após anos de esforço para concretizá-las. A obra se abre e se encerra com tomadas circulares dos espaços pessoais da artista, em São Paulo e em Caxias do Sul, ancorando a obra em uma dimensão autobiográfica. Há Casas propõe, assim, uma meditação visual sobre o ato de habitar: não apenas ter um lugar, mas imaginá-lo e desejá-lo em comunidade.
A partir dessa perspectiva, a obra de Rochelle Costi nos convida a compreender a casa não como uma categoria fixa ou sentimental, mas como uma estrutura perceptiva e cultural em constante transformação. Seus projetos revelam como as formas de habitar são atravessadas por convenções sociais, relações de poder, gestos de resistência e modos diversos de imaginar.
Em tempos marcados pela aceleração, pelo consumo visual e pela busca constante do espetacular, o trabalho de Costi adquire uma ressonância particular. Nos lembra que o verdadeiro deslumbramento não está no distante nem no excepcional, mas no próximo, no inadvertido. Nos convida a desacelerar, a habitar de outra forma nossos espaços, a olhar novamente o que temos diante dos olhos. Como Georges Perec, Rochelle Costi nos ensina que o trivial é, na realidade, profundamente político, porque encerra as estruturas que organizam nossa vida e, ao mesmo tempo, os interstícios onde podemos resistir e transformar.
A exposição A casa como laboratório não deve ser entendida unicamente como uma homenagem a uma artista excepcional, mas como uma oportunidade para evidenciar a vigência e profundidade de seu olhar, mas sobretudo como um convite a reconsiderar nossas formas de habitar o mundo. Como se Rochelle Costi nos dissesse, a partir de seu arquivo visual, que entremos em nossas casas — e em nossas formas de olhar — com uma sensibilidade renovada, atentos ao poder do mínimo, do frágil e do invisível. Porque, como nos ensinam Costi e Perec, o deslumbramento não se busca: cultiva-se.
[1] Georges Perec, Lo infraordinario, trad. Mercedes Cebrián, Madrid: Impedimenta, 2008, p. 15.
[2] O huipil é uma peça de vestuário tradicional das mulheres indígenas maias. Essa peça de roupa mesoamericana possui muitas simbologias que expressam a conexão com a natureza, a história e a identidade cultural.
[3] Crossroads, projeto de conversas entre artistas, curado por Alexia Tala para a Luciana Brito Galeria durante a pandemia de Covid-19. Conversa entre Rochelle Costi e Mateo López realizada em 3 de junho de 2020. Visitado em 22 de maio de 2025, em https://www.instagram.com/tv/CA--KIVJ2KP/?igsh=MWt3ZzkydWczcjdqeA==