Analivia Cordeiro, bianca turner e Selva de Carvalho | Fauna, Flora e Primavera: Curadoria de Fernando Mota

24 Setembro - 15 Outubro 2022
Apresentação
“Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso - enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade.
Ailton Krenak - Ideias para adiar o fim do mundo
 
“Há mãos e aranhas, a diferença está apenas no modo como acariciam…
Lygia Fagundes Telles - Ciranda de Pedra
 
Histórias são contadas há milênios das mais variadas maneiras - escrita, oral, performática e tantas outras. Da mesma forma, histórias são recontadas, reinventadas e reinterpretadas com o passar do tempo. Assim, quando dizemos “a história disso e daquilo”, ou “a história é sobre…”, estamos escolhendo uma entre tantas versões possíveis. Partindo desse pensamento, a exposição Fauna, Flora e Primavera apresenta uma nova leitura da história do corpo, da natureza e das relações entre eles a partir dos movimentos confluentes de ambos.
 
O trabalho de Analivia Cordeiro há décadas investiga as possibilidades da linguagem corporal, através de obras em diversos formatos, como vídeo, performance, fotografia, e tantos outros. Para a exposição foram selecionadas em conjunto com a artista obras de diferentes momentos de sua trajetória, passando por trabalhos históricos como M3x3 - o primeiro trabalho em videoarte/dança da historia da arte brasileira (1973) - e Slow Billie Scan (1987) que foi revolucionário para a época em sua experimentação com o corpo e a tecnologia, até trabalhos mais recentes, como Re-construct (2020) realizado durante a pandemia do Covid-19, e o inédito Small Talk (2022), em parceria com a artista e dançarina Gissauro. No contexto da exposição, M3x3 é apresentado em seu formato original (quadrado) em uma antiga televisão de tubo no centro do salão principal da casa modernista, nos levando nostalgicamente a um passado premonitório: os corpos dos dançarinos em movimento fundidos na rigidez da matriz 3x3 do cenário computadorizado, ambos em preto e branco, apontam para um mundo reduzido sem nuances, sem o meio, um conflito entre liberdade e programação, o orgânico versus o artificial, o dilema do corpo coexistindo com a máquina. Slow Billie Scan traz à tona o novo mundo da comunicação na era digital, os efeitos e os desdobramentos possíveis com as novas tecnologias: o video mostra uma transmissão de arte feita através de um slow-scan entre o Museu da Imagem e do Som de São Paulo e a Carnegie Mellon University, em Pittsburgh, no qual a morfologia dos corpos na tela se desfaz conforme a lenta transmissão do arquivo, enquanto novos corpos mutantes se formam em decorrência do processo. Re-construct é uma serie de colagens de sementes naturais em papéis coloridos, formando desenhos geométricos que aludem ao concretismo brasileiro e ao movimento de recomposição da natureza. A segunda parte do trabalho é um video com os mesmos elementos, no qual as sementes se movimentam nos papéis pela ação do sopro, enfatizando ao mesmo tempo a fragilidade da vida e a disciplina natural e instintiva do corpo. Homo Habilis II (2006) tem a mesma estrutura de pensamento, parte de desenho e colagem feitos em quatro mãos com o filho Thomas quando ele tinha doze anos, para em seguida finalizarem em um curto video que apresenta o eterno conflito humano entre guerra e paz, enquanto a natureza participa como testemunha. Small Talk funciona como uma anedota do plano principal da mostra, tanto em seu formato despretensioso, quanto em sua apresentação leve e bem humorada: dois corpos vestidos de cinza dançam livremente numa pequena tela de tablet, ao lado de pequenas fotografias do video. O detalhe é que as meias são coloridas, simbolizando a necessidade de autonomia dos nossos pés, dos percursos que escolhemos trilhar. Completam a participação de Analivia Cordeiro na exposição uma série de fotografias tiradas por ela mesma em 1975 no ritual Kwarup, da tribo Kamaiurá, no Alto Xingu, impressas em folhas secas dentro de cilindros suspensos pelo teto no pavilhão da galeria - são imagens de pessoas em movimento no dia a dia, um viés antropológico dentro da pesquisa da artista. Ainda com destaque na mostra selecionamos um conjunto de fotografias do corpo de Analivia em diferentes períodos de sua vida, registradas pelo fotografo Bob Wolfenson ao longo dos anos, contemplando a mudança natural, a vivacidade e a flexibilidade do corpo humano.
 
A artista bianca turner está presente na mostra com três trabalhos. O video Encobrimento, localizado na adega da casa, em seu subsolo, narra um mito babilônico de Pherecydes de Syros sobre a cerimônia de casamento entre Céu e Terra, sobrepondo cartografias do período da colonização portuguesa em terras ameríndias, no qual o processo de territorialização é percebido como um princípio e uma ação vinculada ao patriarcado, e a apropriação da Terra relacionada à dominação masculina sobre o corpo da mulher, silenciando sua natureza original e renomeando sua superfície através de imposições. A mesma pesquisa cartográfica resultou no trabalho ecos, realizado em parceria com o artista sul-africano Neo Muyanga, uma instalação audiovisual inédita que conclui a exposição no final do pavilhão da galeria (para esse trabalho escrevi um texto separado, disponível próximo à obra). Ainda no pavilhão, a obra Palingenesia - palavra que vem do grego palin (muitas) e gênesis (nascimento) -  alude à ideia de reencarnação; composta por um carrossel de slides vazios que projetam apenas luz na parede em um ritmo continuo, simultâneo a uma segunda projeção que sobrepõe a moldura iluminada com a imagem de um coração humano pulsando, o qual pode ser visto nas transições de um slide para outro. O som amplificado dos batimentos cardíacos reforça a força da natureza dentro de nossos corpos.
 
Selva de Carvalho é a terceira “fada” dessa história… todos os trabalhos da artista são inéditos, incluindo a instalação Lacraia é fogo, que remete aos ciclos da vida, pensada especialmente para o jardim de Burle Marx ao centro da galeria, na qual a lacraia feita de tecido e cerâmica perpassa por plantas e pelo teto ao longo do espaço, num dialogo direto com a arquitetura e a natureza do local. No salão de entrada vemos Medula de Medusa, uma sequencia de esculturas em tecido com desenhos e bordados, atravessadas por um filamento de madeira em suspensão, fixado no teto, formando uma instalação de corpos flutuantes. A “medula espinhal” simboliza a resistência, as adaptações e metamorfoses dos corpos na natureza. No jardim dos fundos, entre a casa e o pavilhão, um outro conjunto de esculturas da artista permeia o solo: Éramos palmeira é formado por seis corpos de folhas de palmeiras e tecidos de algodão fincados diretamente na terra, uma instalação que contrapõe Medula de Medusa em sua apresentação não linear e fixação terrestre. Por ultimo a obra Corpo Chora Coral, um coral feito em tecido com papeis, bordados e desenhos, na parede oposta ao “coração luminoso” de bianca turner, estabelecendo um dialogo entre o órgão vital e o organismo essencial para a vida marinha.
 
O titulo da mostra remete às fadas do conto A Bela Adormecida, o qual obteve diversas versões ao longo dos séculos: a historia original de 1634, intitulada Sol, Lua e Talia, de Giambattista Basile, foi a base para a versão clássica de Charles Perrault, de 1697, na qual existem sete fadas e o final não é exatamente o que contamos hoje, há uma segunda parte após o casamento real; na renomada versão dos Irmãos Grimm, de 1812, são doze fadas e o final é encurtado; a adaptação de Tchaikovsky para o balé, em 1890, transfere o nome da filha da princesa para ela própria, que até então não era nomeada; a versão cinematográfica da Disney, de 1959, mantem a princesa como Aurora e reduz o número de fadas a três, agora chamadas Flora, Fauna e Primavera (ou em inglês “Merryweather”, que significa uma pessoa com personalidade alegre, energia e disposição). Nessa última, possivelmente a mais conhecida atualmente, as três fadas madrinhas presenteiam a princesa no dia do batizado e depois são as responsáveis por acompanhá-la, educá-la e protegê-la ao longo da infância e da adolescência. Vejamos então de forma literal como fica essa sentença: Flora, Fauna e Primavera são as protetoras da Aurora. Interpretemos juntos agora, para além do contexto do conto infantil, usando o sentido científico das palavras que aprendemos nas aulas de biologia: Flora (o conjunto e a diversidade de plantas de uma região), Fauna (o conjunto e a diversidade de animais de uma região) e Primavera (estação do ano que segue o inverno e precede o verão, do latim primo vere = primeiro verão, responsável por alterar o comportamento de plantas e animais devido à mudança climática favorável à floração e à reprodução), são as protetoras da Aurora (nascer do sol, raiar do dia). Finalizando a analogia entre ciência e literatura: as fadas não são apenas responsáveis por uma única pessoa, elas se tornam as protetoras também do amanhã. Porem, quem há de proteger as fadas?
 
Se um simples conto passou por tantas transformações com os anos, porque não podemos também modificar a narrativa das nossas próprias histórias como “Terrumanidade? Quais os movimentos que devemos fazer como corpos singulares e coletivos para prosperar como um corpo só, sadio e sustentável? O filósofo Félix Guattari, em seu ensaio As três ecologias (1989), diz que “Decorrerá uma recomposição das práticas sociais e individuais que agrupo segundo três rubricas complementares - a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental - sob a égide ético-estética de uma ecosofia. - resumindo de forma simplória e largamente rasa o pensamento do intelectual francês, podemos dizer que são necessárias mudanças de comportamento social e de pensamento humano para reavaliarmos questões ambientais e avançarmos de forma mais equilibrada como sociedade no século 21, ou seja, as relações que estabelecemos com a natureza passam impreterivelmente pelas relações que desenvolvemos como seres humanos: a busca por uma vivencia em harmonia com o meio ambiente esta diretamente vinculada à estrutura sócio-econômica e cultural contemporânea que se deteriora a cada instante. Não há fada madrinha que possa nos dar um final feliz se não redirecionarmos a nossa história. Éramos uma vez, e esperançosamente, seremos ainda outra vez.
 
Fernando Mota
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