Delson Uchôa | Geometria Vingada 2º Ato / Não posso esconder Mondrian
Passadas exhibition
Apresentação
Vingar certas geometrias
Cristiana Tejo
“Que história ou estórias contaríamos se, em vez do osso, que depois é machado, que depois é espada, que depois é uma pistola, um canhão, uma metralhadora, que depois é uma bomba, considerássemos os objetos que contêm outras coisas a invenção mais importante da humanidade?”, pergunta a antropóloga Ursula K. Le Guin em seu livro A Ficção como Cesta: uma Teoria¹. Ou seja, se aprendêssemos a admirar a cestaria, a sua trama, sua função e a sociedade que ela gerou (coletora) ao invés do machado ou a lança e consequentemente o mundo que foi criado a partir dos objetos que matam e subjugam o que poderíamos recontar, refazer ou repensar? Uma história da arte a partir da cesta talvez fosse uma narrativa em que a casa, os afetos e o que nutre e comove o artista fosse mais importante do que os prêmios, as cifras, as bienais e o currículo.
Ao adicionar à sua pintura a fibra vegetal que é a base dos cestos, esteiras e casas dos muitos povos existentes desde sempre no território que passou a se chamar Brasil e de muitos outros que passaram a fazer parte ao longo dos séculos, Delson Uchoa traz para o primeiro plano a trama que é a estrutura ancestral deste país. Suas pinturas sempre exaltaram abertamente sua origem nordestina, seja pela presença da cor e luz “estridentes” do Nordeste, como apontado por Paulo Herkenhoff, ou pelas inúmeras referências simbólicas ou textuais. Voltar para casa, Maceió, depois de muitos anos no Rio de Janeiro, foi imprescindível para que o vocabulário estético do artista pudesse de fato florescer. Há um grande mal-estar quando falamos sobre o Nordeste numa cidade como São Paulo. Talvez pela contraposição entre um lugar que escancara as edificações opressoras sobre as quais o país foi fundado e a metrópole que tenta encarnar o sonho (seria ilusão?) de ser moderna. Mas como bem observou Bruno Latour, jamais fomos modernos... Por baixo do bairro da Liberdade, por exemplo, jaz o Pelourinho e as primeiras casas das pessoas negras alforriadas do que então era a periferia da outrora pequena vila. Mas se a modernidade é a marcha que passou por cima, massacrou, apagou e dizimou, por que querem fazer parte dela?
A pintura de Delson Uchoa frequentemente é casa, é pele, uma pintura habitada. A geometria estruturante de grande parte de sua produção nos últimos 20 anos, vem das lajotas quadradas do piso, uma geometria doméstica. A resina utilizada como base da pintura acaba por extrair o pó e os resíduos do chão da casa. As obras aqui presentes partem de outras geometrias, em especial das que estão presentes na arquitetura vernacular brasileira, tais como a oca (construídas com palha e madeira), o pau a pique (com suas videiras entrelaçadas e preenchidas com argila) e a casa de terra batida, além das platibandas nordestinas, releitura local de uma estrutura proveniente da Península Ibérica e com suposta origem mourisca. Para povos como Wayana, Tiriyó, Aparai e Yekuana, as fibras trançadas de arumã trazem similitudes com o revestimento dos humanos, formando, portanto, “peles” tanto da mulher primordial quanto a dos sobrenaturais fundamentais². O entrançamento adicionado por Delson à sua nova pintura remete, destarte, a outras casas e peles, outros contentores. Trata-se de uma espécie de cartografia, de localização cultural e sentimental de cidades, elementos, materiais e padrões. Assim como Piet Mondrian olha para o grid do traçado urbano de Nova York e a dinâmica de circulação da grande cidade do novo império, Delson Uchoa observa a trama geométrica das casas, padronagens, artefactos provenientes das regiões agreste e sertaneja do Nordeste, e pinta suas vibrações. Mas diferentemente de Mondrian que se abisma com o estranho e diferente, Delson mergulha no caldo de sua cultura. As terras agrestinas e sertanejas são caracterizadas pela resistência de humanos e não-humanos. Não muito usado no Brasil, o vocábulo agreste significa áspero, cru, ríspido e nessa região nordestina refere-se às condições climáticas e de solo. No entanto, a luta para que a vida vingue é grande neste território. Apesar de todos os revezes, seres e coisas brotam. Na história da arte a partir da cesta é esta geometria que deve ser vingada, mesmo não esquecendo Mondrian.
¹ Le Guin, Ursula K. (2022). A ficção como cesta: uma teoria e outros textos. Lisboa: Dois Dias edições.
² VELTHEM, Lucia Hussak van. Trançados indígenas norte amazônicos: fazer, adornar, usar. Revista de Estudos e Pesquisas, Brasília, v. 4, n. 2, p. 117-146, dez. 2007, p.124.
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