Héctor Zamora | As Circunstâncias
Passadas exhibition
Apresentação
Entre os dias 02 e 23 de setembro de 2023, Héctor Zamora (Cidade do México, 1974) apresenta, na Luciana Brito Galeria, a exposição individual As Circunstâncias. Composta por dois trabalhos a um só tempo performáticos e escultóricos, a mostra nos convida a refletir sobre questões relacionadas à iconografia de gênero, tema candente nos dias atuais.
A obra Platônicos, realizada pela primeira vez em 2017 em Ponte Vedra, Espanha e, agora, na sala de estar da Residência Castor Delgado Perez, hoje ocupada pela Luciana Brito Galeria, parte da iconografia clássica masculina, representada numa escultura de pedra, que deverá ser modificada por meio da ação de um profissional da cantaria. Torso nu, músculos tensionados, sexo exposto, semblante sério e olhar focado são características recorrentes da representação do homem na cultura ocidental, desde a antiguidade clássica. David (1501-1504), escultura realizada por Michelangelo no período renascentista, talvez seja o mais emblemático exemplo de tal iconografia. Mas a importância dessa escultura não reside apenas na perfeição de sua forma. O herói bíblico é também símbolo de um projeto civilizatório baseado no racionalismo e na virilidade, e que nos orienta – e oprime – até os dias de hoje.
Em Platônicos, a encomenda feita por Zamora ao escultor é transformar a figura humana em um conjunto de sólidos platônicos. Trata-se dos cinco poliedros elementares da geometria espacial, cujas faces são congruentes e idênticas: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro, icosaedro. No diálogo Timeu, escrito em cerca de 360 a.C., Platão associa tais formas aos elementos fundamentais da natureza: fogo, terra, ar, água e as constelações do céu, respectivamente. Assim, a ação proposta por Zamora pode ser entendida como uma espécie de “retorno às origens” ou, ainda, um gesto de reconexão do homem com a sua própria natureza.
No entanto, apesar da beleza poética da encomenda do artista e do profissionalismo do executor, a ação está, desde o início, fadada ao fracasso. Uma vez esculpida pela primeira vez, a pedra se torna molecularmente mais instável, o que dificulta significativamente a possibilidade de reesculpi-la com a precisão requerida para a criação das formas platônicas. Assim, por maior que seja a competência do canteiro, o que restará da escultura após um árduo e ruidoso processo serão, em sua maioria, cacos de pedra disformes, espalhados desajeitadamente pelo ambiente modernista da casa. Neste cenário, fica evidente um certo descompasso entre a premissa idealista e o resultado algo catastrófico. Com isso, Zamora nos provoca, entre outros, a pensar sobre a distância entre teoria e prática com que estamos acostumados a conviver no dia a dia e que, apesar de fazer parte de um anedotário coletivo popular, tem bases filosóficas bastante sólidas, ancoradas nessa mesma cultura greco-romana, fundamentalmente androcêntrica, ao redor da qual a obra orbita.
Por sua vez, Movimentos emissores da existência se inicia com uma ação em que um grupo de mulheres caminha sobre vasos de barro fresco. A performance, em sua quarta edição, ocorrerá no galpão anexo à casa, e foi realizada anteriormente em 2019 na Cidade do México e em Otazu, Espanha, e em 2020 em Dhaka, Bangladesh. Para a criação dessa obra, Zamora parte da imagem icônica de uma mulher carregando, sobre a cabeça, um jarro de cerâmica portando água. O hábito de mulheres carregarem grandes volumes de carga sobre a cabeça está presente nas mais diferentes culturas, da matriz ocidental greco-romana a outras culturas presentes na Ásia, Índia, África e Américas, incluindo-se, por óbvio, o Brasil. Para realizar a operação de carregar um peso por vezes quase equivalente à sua própria massa corporal, são necessárias, além de força e destreza, também alguma sutileza. Afinal, movimentos bruscos não combinam com equilíbrio. O imaginário ocidental, infelizmente, acabou associando essa imagem à de uma mulher utilitária e altiva, porém dócil. A prova disso são as lições de etiqueta de tempos nem tão remotos assim, em que meninas de classe média alta eram estimuladas a carregarem objetos sobre a cabeça, como forma de exercitarem uma postura ereta e comedida. Difícil não associar tal imagem a toda sorte de regimes disciplinares a que a mulher é submetida, desde os tempos mais remotos até os de hoje. Para lembrar de um dizer relativamente recente: bela, recatada e do lar.
Ao convidar as mulheres a pisarem sobre os vasos, Zamora propõe um interessante jogo com tal iconografia, intervertendo, literal e metaforicamente, o seu sentido. O ato de tirar o vaso do alto da cabeça e passá-lo ao chão, para, a seguir, pisá-lo com os pés, pode ser lido com um gesto de recusa à condição utilitária e submissa que foi relegada à mulher no curso da história ocidental. No entanto, ao serem utilizadas peças de barro fresco, e, portanto, maleáveis, o que acontece ali não é um gesto de destruição, mas sim de transformação. Uma vez pressionados com os pés,
em uma combinação de força, precisão e sutileza (as mesmas habilidades, portanto, requeridas para que os vasos sejam mantidos sobre a cabeça), o que antes eram objetos utilitários se tornam um elemento escultórico provocador, que nos lembra uma forma uterina, vaginal. Impossível não enxergar a surpreendente capacidade de transmutação empreendida por esse grupo de mulheres como uma metáfora do dia a dia feminino.
O título da exposição, assim como desta última obra, foram ambos tomados de empréstimo por Zamora do belo livro Atlas do corpo e da imaginação (2013), de Gonçalo M. Tavares. No Atlas, amparado por autores dos campos da arte, filosofia, literatura e arquitetura, Tavares cria verbetes que nos provocam a pensar na relação do nosso corpo com o mundo. Em um dado momento, o autor nos fala de uma certa “musculatura existencial”, ou aquilo que nos impele a movimentarmo- nos vitalmente, interagindo com o que está ao nosso redor. Para Tavares, há diferentes maneiras de utilizarmos essa musculatura, sendo que a mais potente está ligada a uma condição transformadora, ou seja, à realização de movimentos, ou ainda, à criação de “situações” (termo que Tavares, por sua vez, toma de empréstimo de Guy Debord) que têm o potencial de transformar, ainda que momentaneamente, a realidade ao nosso redor. Esse tipo de acontecimento
Gonçalo M. Tavares nomeia de Movimentos emissores da existência, termo que, não à toa, Zamora escolheu para o trabalho.
Em tempos em que cada vez mais convivemos com evidências do fracasso de um projeto civilizatório, Héctor Zamora nos convida a refletir sobre diferentes formas de enfrentarmos os desafios que se colocam neste nosso presente Antropocênico, ou mesmo diferentes maneiras de utilizarmos a nossa “musculatura existencial”. Será mesmo o melhor caminho seguirmos buscando, na base da força e de muitos tipos de violência, manter um projeto civilizatório que, a cada dia, se mostra esgotado? Ou seria o caso de, com sutileza, sensibilidade e precisão, buscarmos transformar, coletivamente, aquilo que parece imutável?
Helena Cavalheiro
set/2023
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