Apresentação

Quem é, por enquanto, Homem-Natal?

 

Diante dos trabalhos desta exposição, é notável o interesse de Rafael Carneiro pela materialidade da imagem como elemento fundamental de suas significações. Mas, quer saber? Talvez tenha sido sempre assim, desde o início da trajetória do artista. Porque já em suas primeiras pinturas, realizadas na metade da primeira década dos anos 2000, Carneiro chamava a atenção do observador para o fato de que, tanto quanto o que a imagem dá a ver (seja ela uma cena de pôr-do-sol, um registro de guerra ou uma ação de sexo explícito), participam de sua construção de sentido as condições de sua feitura e de seu aparecimento no mundo. Ou, para dizer diferente, a carga semântica de uma representação ou de uma reprodução visual define-se inclusive pelo modo como aquilo é produzido e apresentado, a depender do lugar onde é exposto e percebido, conforme o contexto social, institucional e ideológico de sua exibição e recepção. O que compõe a materialidade da imagem interfere, enfim, em suas significações conceituais, morais e simbólicas.

Daí que Rafael Carneiro continue a trazer conteúdos tão heterogêneos para labutar em uma pintura deliberadamente ambígua: filmagens de câmera de vigilância de agência espacial, ilustrações de enciclopédia, fotografias de bolo impressas em manuais de culinária, stills de filmes de faroeste, personagens de desenho animado, adesivos infantis, carimbos. Em diversos trabalhos realizados, principalmente até 2021, o artista costumava utilizar um projetor de imagens para ampliar essas reproduções sobre a tela e então tomá-las como referência para o trabalho de pintura. Ou fazia colagens a partir dessas reproduções para, em seguida, projetar as montagens sobre a tela e, com base nisso, pintá-las, muitas vezes reproduzindo as manchas de luz emitidas ali pelo aparelho de projeção. 

Essas várias transferências de imagem, de um meio a outro, de uma linguagem a outra – da fotografia para a estampa de baixa qualidade em livro didático, daí para o projetor e da projeção para a pintura –, acabavam por desarrumar as atribuições prévias, ou “originais”, de cada uma daquelas figurações que, desgastadas justamente por esses processos de transição, surgiam, na obra de Carneiro, reproduzidas com notável habilidade técnica e, ao mesmo tempo, esvaziadas, envoltas em fantasmagoria, com aparência falsa, ou, no mínimo, estranha àquela nova condição. Era um pouco como se estivessem ali sem estar, como se fossem uma visão, a aparição de algo, impressa ou impregnada em planos bidimensionais. Era como se passassem a integrar um universo que, diferente daquele do qual foram retirados, não é nem didático nem narrativo, não é puro entretenimento nem só a sistematização de conhecimentos – um terreno em que nada é unívoco, em que não há objetivo prévio, nem para ensinar, excitar, monitorar, nem só para divertir. Se há objetivo, um deles é também incomodar. E aquilo que instruiria passa, assim, a confundir. 

De lá para cá, Rafael Carneiro passou de fato a experimentar um raio crescente de possibilidades na constituição física de suas pinturas. Principalmente com o uso de médiuns à base de gel, de pigmentos naturais (a partir de terra, por exemplo) e com a alternância de tinta acrílica, bastão e tinta a óleo. Tais investigações têm a ver com as pesquisas e a produção de materiais tocadas na fábrica de tintas que Carneiro criou com Bruno Dunley, também artista, em 2020. Desde então, suas investigações conferem a seus trabalhos uma variedade cada vez maior de formas, cores, consistências e texturas. O próprio processo concentra-se na exploração desses materiais e nas implicações que isso traz para a linguagem da pintura. Concentra-se na lida com as substâncias, em soluções diversas de desenho e pincelada, e na preparação das superfícies – se mais ou menos ásperas, com ou sem brilho, com dois ou mais níveis de reflexividade, opacas ou translúcidas, espessas ou ralas, lisas ou ásperas, homogêneas ou irregulares, etc. 

Em consequência, matéria, gesto e imagem passaram a coincidir nas pinturas de Rafael Carneiro, o que não quer dizer que tais elementos tornaram-se a mesma ou uma única coisa. Ao contrário. Cada um continua a ter sua autonomia em relação aos demais, e os três impõem-se, sem hierarquia, com níveis iguais de força e importância, na formação dos trabalhos. Por isso mesmo, essas pinturas são densas. Não são necessariamente sobrecarregadas, mas estão cheias de acontecimentos. As propriedades de cada área da superfície, por exemplo, constituem-se em ocorrências, bem como os jogos entre cheios e vazios. E alguns trabalhos são econômicos, feitos a partir de poucos movimentos, ainda que alguns sejam bastante laboriosos. Nesses, as formas tendem a ser abertas, soltas, com aparência de marcação de sinais, mais do que de construção de estruturas. 

Outras pinturas, diferentemente, são realizadas em sessões ou numa sucessão intensa de ações: de faz, desfaz e refaz, destrói e faz de outro jeito, depois de outro, e de outro ainda. Nessa superposição de camadas, as decisões anteriores, em geral, vibram no fundo, visíveis através de transparências, entre resquícios de gestos, figuras e manchas deixadas para trás em algum momento, mas que, apesar do fim dos processos, continuam ativas e partícipes, a ponto de a imagem não se estabilizar por completo, e de o trabalho, mesmo concluído, jamais se dar por encerrado. Nesse raciocínio, a obra não tem compromisso firmado nem com figurações nem com abstracionismos. Não há regimento moral que classifique o aparecimento da palavra “cu” ao lado do desenho de um cavalinho de balanço de madeira. Nem seria, então, mero acaso o fato de essas superfícies terem aspecto gelatinoso, elástico, meio líquidas, meio sólidas, com profundidades e profundezas incertas. Tudo parece mesmo prestes a passar por transformação. Como se a qualquer momento essas coisas pudessem virar, mudar de estado físico, de consistência, de conformação e de significado. 

Estabelecem-se, com isso, tensões em objetos que transmitem, ao mesmo tempo, a sensação de saturação e a ideia de que são o resultado de uma série de ataques desferidos com e contra seus materiais, a partir de um grau zero da linguagem. Esses objetos carregam a consciência da história da arte, ou da história da pintura em particular, mas dão ignição a seus motores a partir de uma espécie de tabula rasa. A obra viveria entre acúmulos, um certo cansaço e o desejo de levar adiante pensamentos e operações em elaboração contínua, sem parar. O título da exposição, Homem-Natal e outras histórias…, despista ao sugerir que há narrativas, ou entrechos fechados, a serem contados aqui, embora os trabalhos nem ascendam à ordem do discurso. Por outro lado, o nome também insinua que cada obra é ou compreende uma história, que seus processos têm uma sequência ou um arco de eventos que conformariam um enredo. Por essa direção, os trabalhos são, mesmo, obscenos na exposição de suas materialidades e processos – que, no mais, desencontrados e contraditórios, não são assim tão encadeados. Mas cada pintura instaura condições específicas de produção e apresentação, a fim de fazer o que, no exercício daquela atividade, ainda não foi feito, a fim de ver o que ainda não foi visto, a fim de saber algo sobre o desconhecido. Nesse sentido, sim, as histórias encontram-se em aberto e em disputa. Não por escrever, mas em modificação constante.


José Augusto Ribeiro

Installation Views
Obras
  • Rafael Carneiro Sem título | Untitled, 2025 óleo sobre tela oil on canvas 200 x 140 cm 78.74 x 55.12 in
    Rafael Carneiro
    Sem título | Untitled, 2025
    óleo sobre tela
    oil on canvas
    200 x 140 cm
    78.74 x 55.12 in
  • Rafael Carneiro Sem título | Untitled, 2025 óleo sobre tela oil on canvas 180 x 120 cm 70.86 x 47.24 in
    Rafael Carneiro
    Sem título | Untitled, 2025
    óleo sobre tela
    oil on canvas
    180 x 120 cm
    70.86 x 47.24 in
  • Rafael Carneiro Sem título | Untitled, 2025 óleo sobre tela oil on canvas 200 x 140 cm 78.74 x 55.11 in
    Rafael Carneiro
    Sem título | Untitled, 2025
    óleo sobre tela
    oil on canvas
    200 x 140 cm
    78.74 x 55.11 in
  • Rafael Carneiro “Piscina”, 2024 óleo sobre tela oil on canvas 200 x 140 cm 78.74 x 55.12 in
    Rafael Carneiro
    “Piscina”, 2024
    óleo sobre tela
    oil on canvas
    200 x 140 cm
    78.74 x 55.12 in