Héctor Zamora | Inconstância Material
A obra de Héctor Zamora confere visibilidade à relação entre passado e presente, atribuindo forma tangível a conexões de tensão. Ao re-contextualizar as propriedades físicas de peso e equilíbrio, gravidade e flutuabilidade, Zamora cria geometrias a partir de histórias. Contudo, dado que seus projetos são efêmeros, essas conexões materializadas nunca estão fixas no espaço ou no tempo. Ao contrário, suas flutuações físicas espelham os caprichos da história, iluminando e sugerindo modos de se reconstruir o passado, reexaminando o presente.
A obra de Zamora cria momentos de suspensão no tempo para reavaliar possibilidades. Em dada suspensão particularmente eloquente, intitulada Errante (2010), o artista estendeu, sobre o negligenciado rio Tamanduateí, cabos de aço nos quais pendurou vasos contendo árvores. Em desuso exceto como lixão, hoje o Tamanduateí dificilmente pode ser considerado como um rio: o antigo canal construído nos anos 1920 tornou-se uma assombrosa manifestação da imundice urbana em São Paulo e um exemplo brilhante da rápida perda de espaço público na cidade. O passado de São Paulo vem sendo rapidamente eclipsado por seu presente, na medida em que este se expande mais depressa do que a infraestrutura urbana poderia suportar. Nesse contexto, o ato de suspensão de Zamora contém uma dupla implicação. Em primeiro lugar, nas palavras de Guilherme Wisnik, a intervenção “replica as operações de enérgica artificialidade e improvisação de uma cidade que salta insistentemente sobre suas dificuldades ao invés de procurar resolvê-las”. E, em segundo lugar, as árvores propõem uma possibilidade alternativa para o futuro, estendida tentativamente sobre a realidade. Errante é um desafio revisionista: como seria se a trajetória do desenvolvimento da cidade pudesse ser alterada, e o progresso, redefinido e desacelerado? Será que seus habitantes imaginariam um passado diferente?
A rede dos eventuais futuros que Zamora lança pode revelar as arquiteturas do presente. Nascido no México e vivendo no Brasil, ele tem uma voz multicultural – ainda que o mundo da arte não raro obrigue os artistas a definir-se por uma única posição. Ser artista latino-americano significa estar preso por duplas amarras de marginalidade: seja por confrontar a tradição histórica da arte predominante, seja por permanecer confinado no âmbito do cânone ocidental. Zamora enfrenta esse problema de muitas maneiras. Um deles envolve o redirecionamento da demanda, de modo a incorporar, de forma abrangente, um patrimônio cultural, concentrando-se em temas universais: formas geométricas, verdades matemáticas, cores expressivas e fenômenos naturais. As formas matemáticas recortadas de Zamora constituem exemplos nítidos: Sesshas (Trienal de Aichi, 2010), Synclastic/Anticlastic [Sinclática/Anticlática] (Bienal de Liverpool, 2010), α=360ºR/r (Cidade do México, 2000); obras que manipulam ou dão visibilidade a padrões de vento: Credibility Crisis [Crise de credibilidade] (Miami, 2010); N S E O NE NO SE SO [N S L O NE NO SE SO] (Cidade do México, 2009), Sensível perturbação (São Paulo, 2008), Volatile Topography [Topografia volátil] (Bienal de Pusan, 2006); intervenções ambientais: Geometrias daninhas (São Paulo, 2006), Praia Recanto das Crianças (São Vicente, 2006); instalações monocromáticas: Azul (Cuernavaca, 2006), Amarillo [Amarelo] (Xalapa, 2003).
Em suas obras mais explicitamente politizadas, Zamora volta a propor e explorar símbolos culturais de peso. Ao imediatamente evocar fantasias de lazer, as redes que ele instalou no Museu Municipal de Nagoia, no Japão, como parte do projeto Daring Leisure [Lazer audaz] (2010) trouxeram a inatingível viagem de férias tropicais quase ao alcance do observador. Entretanto, as redes foram penduradas a uma altura ligeiramente alta demais para o visitante, e os guardas do museu impediam que as pessoas tentassem usá-las. Ao importar objetos estrangeiros para o contexto do museu, ao mesmo tempo negando-lhes qualquer valor de uso, a promessa de descanso merecido é questionada. As redes dependuradas também enfatizam a função integral do tempo de lazer nos ciclos econômicos de progresso e produção – particularmente quando consideradas em associação com a presença de um grupo de indivíduos sem-teto que vivem no parque circundante.
Para White Noise [Ruído branco] (2011), pessoas da comunidade fincaram quinhentas bandeiras brancas na praia Te Henga, na Nova Zelândia, que depois foram recolhidas e mostradas num espaço expositivo fechado. A transposição das bandeiras de uma praia pública e acessível para um espaço particular restrito altera totalmente o modo de interpretação da obra: todas as bandeiras estão essencialmente em branco, até que sejam fincadas em algum lugar. Em particular, White Noise não trivializa a identidade nacional ou a universalidade humana – pelo contrário, a obra importa um símbolo de muito peso para um novo contexto, para comunicar um significado cultural específico. Este trabalho, particularmente, investiga a especificidade cultural dos temas que são considerados universais, expondo não só o que há de comum, mas também as particularidades da experiência humana, e possibilitando sua coexistência. O uso surpreendente que Zamora faz da multiplicação ou ampliação objetifica os símbolos quintessenciais de nacionalidade.
Ao estender continuamente as limitações físicas do espaço real, Zamora desafia as restrições institucionais, nacionais e ideológicas. Sua sensibilidade excepcional a diferenças sutis de peso e dimensões permite que ele crie metáforas altamente ressoantes e nuançadas, em contextos variados por todo o mundo. Refletindo a paixão do artista pelo movimento e pela expansão, esses locais são com frequência centros de transporte ou cidades-porto. Entre seus projetos mais ambiciosos está a articulação de ícones clássicos da viagem: o navio e a engenhoca voadora – veículos míticos tanto para a imaginação como para carga. Zepelim entalado, que faz parte da obra Sciame di Dirigibili [Enxame de dirigíveis] construída para a Bienal de Veneza de 2009, era um gigantesco dirigível entalado em um corredor externo do Arsenale: uma referência disfarçada a um corpo de esperanças infladas que nunca saiu do chão.
Assim como o zepelim, o navio que Zamora construiu no Centro de Arte Pinchuk em Kiev, Ucrânia, era fadado ao fracasso. A bela arquitetura da embarcação era superdimensionada para a galeria, e assim o navio permaneceu parado, para sempre em construção. O projeto intitulado БАМ – стройка века! [BAM, a construção do século] (2010) teve por inspiração a estrada de ferro Baikal-Amur Magistral. Originalmente projetada no final do século 19 como alternativa à ferrovia transiberiana e ininterruptamente em obras durante a década de 1970, a linha férrea tornou-se um símbolo forte da história, da ideologia e da desmedida ambição soviéticas.
A segunda embarcação de Zamora não foi construída, mas sim desmanchada durante um espaço de tempo. Na praça pública que homenageia os heróis navais em Lima, no Peru, uma tradicional bolichera peruana foi desconstruída durante vários dias. O barco de madeira, de significado histórico, evoca uma longa e importante linhagem – desde batalhas navais no Pacífico até conflitos atuais entre a pesca artesanal e a industrial. O título do projeto, Orden y Progreso [Ordem e progresso] (2012), foi tirado do lema inscrito na bandeira brasileira, cuja versão completa é “Amor por princípio, a Ordem por base, e o Progresso por fim”. Desafiando mais uma vez as promessas de um progresso ininterrupto e autorrenovável, e postulando que a aceleração rápida resulta em estagnação abrupta, a exposição do esqueleto do barco por Zamora tornou-se uma exposição dos mecanismos constitutivos do poder, remetendo à história chilena de conquistas marítimas e luta de classes. Mas o desmanche da figura também a torna mais leve, aliviando iconoclasticamente uma pesada carga histórica. A obra de Zamora se distancia da desilusão e se aproxima da liberação.
Um objeto recorrente na obra de Zamora é o tijolo cerâmico. Em projetos tais como 6, da série Potencialidades (São Paulo, 2009) e H20 (São Paulo, 2010), o próprio tijolo é materialmente descontruído; em outros projetos, mais notadamente De Belg wordt geboren met een baksteen in de maag [Todo belga nasce com um tijolo no estômago] (2008), a estratificação das próprias classes trabalhadoras é desconstruída. Em seu uso mais recente do tijolo – a instalação Inconstância material (2012) apresentada na Galeria Luciana Brito, em São Paulo – Zamora distribuiu vinte pedreiros no espaço da galeria, jogando tijolos uns para os outros em um circuito de revezamento, desde a rampa do estacionamento até o interior da galeria – levantando, jogando e conversando, como se num dia típico de um canteiro de obras. Zamora traz os pedreiros para o primeiro plano de maneira a demonstrar os processos essenciais pelos quais nossos edifícios e nossas sociedades são construídos, e para sugerir que os sistemas (hierárquicos) de construção e feitura no mundo da arte dependem daqueles da sociedade – e os refletem. A cultura de serviço da arte e seus mecanismos ocultos são questionados. Quem serve a quem no mundo da arte e o que está eventualmente sendo construído?
Em Inconstância material, o infindável (mas sem propósito) circuito de tijolos anula o ato em termos de produtividade. Mas os pedreiros não estão apenas trabalhando – eles passam comentários ensaiados, para a frente e para trás, junto com os tijolos. Héctor Zamora convidou o poeta e artista brasileiro Nuno Ramos para criar uma obra verbal, intitulada Gigante (2012), para acompanhar a obra física. Expressões coloquiais, que remetem a partes do corpo, foram selecionadas e organizadas para serem gritadas pelos trabalhadores numa determinada sequência que desmembra suas estruturas, espalhando um corpo uno pelo circuito. Esta geometria de fala site-specific se correlaciona com a forma do movimento. A formalização, por alguns instantes, de trechos de linguagem da classe trabalhadora no interior da galeria gera um momento não categorizável entre a estase e o movimento, trabalho e lazer, arte e vida. Trabalho emblemático da obra de Zamora como um todo, Inconstância material sugere as possibilidades para criatividade e atividade lúdica, até mesmo em circunstâncias as mais limitantes.
Elvia Wilk, Berlim 2012
Elvia Wilk é escritora e editora. Além de textos críticos e críticas para publicações como Frieze d/e e ArtSlant, ela é editora da revista de arquitetura on-line uncube e criadora da publicação anual sobre poesia Eaders Digest.